Moro na cidade dos ônibus amarelos. Estudo na cidade vizinha. Meu meio de deslocamento entre as duas cidades é a condução dos ônibus amarelos. Não é tão viável quanto seria com uma moto, pois a passagem é cara: R$ 2,35. Dizem que é porque a gasolina subiu, a inflação aumentou, a manutenção está mais cara e etc. Desculpas das mais variadas para nos surrupiarem o pouco que nos resta. Quando a inflação está baixa, a gasolina, o efeito não é reverso. Mantêm-se o preço nas alturas. Mas enfim, reclamações e protestos a parte, eu aprecio muito um bom passeio de ônibus. Sou capaz de levar apenas os dois e trinta e cinco da passagem de ida e pegar um no primeiro ponto da cidade. Assim, sem mais nada a fazer, o pego e sigo pela linha. Ao termino de seu trajeto dou a desculpa ao cobrador de que esquecera o que ia fazer, ou simplesmente desistira do meu destino, assim regresso ao meu ponto de partida tendo gasto apenas uma passagem e desfrutado de um passeio de quase duas horas.
Gosto do balanço do ônibus, do barulho do motor nas retomadas de velocidade e do freio arranhado, das janelas grandes que me permitem uma visão ampla da paisagem – queria eu ter essa visão para meus contos - e, claro, das pessoas que encontro, praticamente, todos os dias em meu trajeto diário. Mesmo não as conhecendo, sinto certa intimidade com elas.
Pego o ônibus amarelo no ponto central da cidade, em frente à casa do padre, mais ou menos às três da tarde. Lá, já encontro
figurinhas carimbadas como o simpático
mercador de passagens economicamente mais viáveis – comprador e vendedor de passes - Seu Jair. Um senhor aposentado, de cabelos brancos, que vive ali tirando um dinheirinho extra para fechar o mês. Converso um pouco com ele, quando lhe entrego uma nota de cinco reais e espero o troco da compra de dois passes. Conta-me histórias de sua juventude, discutimos política, falamos um pouco sobre dores reumáticas e nos aquietamos quando a
popozuda Maria da Rua de Baixo passa rebolando com aquele shortinho curtíssimo para admirá-la e tecer alguns comentário indecentes bem audíveis só para vê-la sorrir maliciosamente.
Ficamos ali de prosa até eu avistar o
amarelão dobrando a esquina da rua de baixo e vindo em direção ao ponto. Interrompo a conversa, digo-lhe um “Até amanhã Seu Jair” e me aprumo para embarcar.
Entro no ônibus e me deparo com as mesmas caras de sempre, e alguns perdidos de viagem única. Os irmãos
Rós, como eram conhecidos os irmãos gêmeos de 11 anos que sentavam no último banco. Roberto e Rodrigo. Eram duas pestes, sempre a aprontar com qualquer um que tivesse distraído. Sua vítima preferida era Dona Lúcia – dona de casa de, mais ou menos, uns 40 anos, fazia faxina na casa dos
granfinos da cidade vizinha, conhecedora de todas as fofocas da alta sociedade da cidade. Como trabalhava muito aproveitava o tempo da viagem para dormir um pouco. Era a hora que os irmãos
Rós lhe aplicavam as mais variadas peças. Puxavam-lhe o cabelo, cutucavam seu ouvido com uma caneta, entre outras peraltices... Só para vê-la pular de susto e caírem na gargalhada. Tudo isso sob a supervisão do cobrador Matsumoto que lhes dava uma bronca disfarçando a risada. Matsumoto era o japonês mais abrasileirado que eu já vi. Amante de feijoada e samba, era sempre visto no
buteco do Jonas todos os domingos, onde saboreava a feijoada mais bem falada da cidade e uma boa caipirinha. Fraco na bebida, Mat - como todos o chamavam – se permitia e caia no samba logo em seguida, claro.
Eu sentava perto do cobrador, assim conseguia ter uma boa visão de todo o ônibus. Seguíamos viagem e dois pontos à frente entravam mais duas personalidades no ônibus amarelo. E já entravam discutindo – como sempre. Jarbas e Conca. Jarbas era um português sem sotaque, mas mantinha por ideologia ortodoxa e respeito à pátria mãe seu grande bigode preto. Roliço e careca usava um boné com as bandeira do Brasil e de Portugal bordadas para diminuir a expressão de sua grande cabeça e esconder a calvície. Apaixonado pelo Brasil, defende a seleção brasileira mais do que a portuguesa no futebol, sem falar que é vascaíno dos roxos. Conca, que na verdade chama-se Diego Armando, recebeu esse apelido do Jarbas por ser muito parecido com o ex-meia atacante do Vasco chamado Conca. Pequeno e marrento, Diego não levava desaforo pra casa. Argentino dos mais fanáticos por sua pátria reclamava de tudo no Brasil e sempre soltava uma frase de lamento “
Si fuera en Argentina...”. Discutia por qualquer motivo com qualquer um, mas o que ele adorava dizer era que: “
Maradona fue mejor que Pelé”. Onde Jarbas rebatia dizendo:
“Eu que sou português admito que Pelé foi o melhor do mundo”. E Conca retrucava:
“Pelé fue el mejor del mundo y Maradona es mejor que Pelé. Justo!”... E assim continuavam discutindo. A essência da discussão entre Jarbas e Conca sempre era o futebol. E assim seguíamos em frente, com o bate boca dos dois como trilha sonora.
Alguns pontos depois subia ao
amarelão, com um altíssimo
“Oigalê! Buenas.” como cumprimento, o Gaúcho. Daqueles que usava bombacha até no verão, de cuia na mão e garrafa térmica na outra.
“O gaúcho mais macho de todo o Rio Grande, tchê!” – Dizia ele. Nessa hora os irmãos
Rós aquietavam-se e encolhiam-se no canto com medo. Na última vez que tentaram aprontar com o Gaúcho ele lhes aplicou um “joelhaço dos pampas”, o que os fez chorarem de muita dor. As discussões de Jarbas e Conca cessavam. Ninguém sabia ao certo o seu nome, ninguém ousava perguntar. Só sabiam que era gaúcho porque ele incessantemente gabava-se disso. A partir daí, ninguém mais interessante entrava e se seguia tudo tranqüilo.
Meu ponto já estava perto. Então eu entregava um dos passes ao cobrador Mat e passava a catraca. Fitava os irmãos
Rós para ver se continuavam quietinhos. Acenava com a cabeça para os que ficavam e apertava o botão para o amarelão parar no próximo ponto. Parando, eu me aproximava da porta, agradecia ao motorista com um “valeu” ou “até amanhã” e seguia. Descia e me dirigia para meu curso.
Acabava por volta das dez e meia. Saia calmamente da sala de aula e ia para o ponto de ônibus pegar o amarelão do retorno. Esse era diferente daquele que me trazia à escola. A começar pelo seu trajeto. Ele passa por um bairro mais distante antes de seguir para o centro, onde eu moro. O que fazia a viagem mais longa.
E lá vem ele apitando aqueles freios falhos. Onze e cinco. Preciso! Nunca se atrasara, mas também nunca viera cedo. Eu entrava e já me acomodava no fundo do ônibus. Avistavam-se alguns do que partiram comigo no primeiro como o Jarbas, o Conca, o Gaúcho e a Dona Lucia. Dona Lucia que, como sempre, estava tirando um cochilo. O Gaúcho degustando uma erva mate em sua cuia e prosando com outros dois homens que também pareciam ser gaúchos.
“Esta sim, é uma erva mate legítima dos pampas, tchê” – era uma das frases que eu mais escutava ele falar para os outros. Conca e Jarbas já não discutiam mais. Via-se Conca deitado sobre o ombro de Jarbas e os dois afundados em um sono profundo.
Encontravam-se outras caras naquele ônibus. Das quais, a maioria estava a cochilar ou pestanejar em silêncio. Esse amarelão tinha um diferencial. Seria
O diferencial. O que fazia eu ter um carinho todo especial por essa linha. O cara que fazia minhas noites melhores do que seriam. O cobrador Jeremias.
Não que eu esteja afim do Jeremias, não é o caso, mas o que ele propiciava a todos os passageiros era inigualável. Moreno do cabelo pixaim lembra muito aqueles integrantes de grupo de pagode que não tocam nada além de um triângulo e que ficam a noite toda lançando piscadelas e olhares 43 para as
cocotinhas da platéia. Jeremias era o trunfo daquela viagem. Cantava todas as meninas que passavam na catraca, e puxava conversa com todo mundo. Tirava onda quando possível. Tinha mania de cantar clássicos do samba e pagode e mesmo eu não gostando de pagode ou samba eu cantarolava sussurrante quando ele começava. Grupos como: Só Pra Contrariar, Raça Negra e Originais do Samba eram lembrados e vozeados por ele. Fã incontestável de Alexandre Pires tinha uma foto ao lado do ídolo que mostrava a todos. Seu repertório, então, não poderia deixar de ter os clássicos de seu ídolo.
Todos silenciados quando Jeremias começou: “Tô fazendo amor com outra pessoa...”-
sua música preferida e a que eu mais gostava também. Sua voz meio rouca sussurante era a calmaria que todos queriam para dormir. Poucos conseguiam resistir ao sono. Eu me mantinha sempre acordado assistindo o espetáculo de Jeremias.
Eram shows de meia hora toda a noite. De segunda a sexta. Mas tudo tinha seu fim. Meu ponto sempre chegava mais rápido, não por ser perto, mas por estar tão entretido que não vira o tempo passar.
E assim passava a catraca onde cumprimentava Jeremias e lhe entregava o passe. Agradecia pelo
minishow e seguia para descer. Ele me olhava feliz, me desejava uma boa noite como a todos os outros que ali passavam.
Parava o amarelão e eu saltava. Invadia-me uma nostalgia grande nessas horas. Via-o seguir com aquele barulho gostoso do motor. Dobrava a esquina e sumia em outra rua. E o que só me restava era a letra do samba de Alexandre Pires cantada por Jeremias na cabeça...
Nota do autor: O final legal eu não tinha salvado, por tanto, tive que criar um novo final e não ficou tão bom quanto o outro. Lamento ;/