segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O ensaio para a morte

Já faço a curva, convicto do que estaria prestes a fazer. Acelero, passo a terceira marcha. Sigo por uma reta longa porém terminavel, em meu percurso, por arbustos altos. Que nada sei o que há por de trás. Espero que seja um desfiladeiro, ou um muro grosso de concreto. Algo que não me faça sofrer. Algo que me leve sem que eu tenha que soltar o último ar dos pulmões. Que estraçalhe o carro comigo dentro. Que me destroce em mil pedaços, para que seja rápido.

É madrugada de um domingo tedioso, ninguém nas ruas, só eu e meu carro aumentando a velocidade. Acelero mais fundo, quarta marcha. Seguro o volante um pouco mais firme. Quero que seja direto, sem desvios, sem erros. Estou em um transe, onde as imagens de uma vida curta jorram em meus olhos repetidamente. Sei que tive bons momentos e maus também, como toda pessoa, mas creio que nada mais terei. Pois nada sinto.

Sempre sonhei - ou tive pesadelos - de que ia morrer jovem dirigindo um carro em alta velocidade e que iria me perder em uma curva. Não! Eu só não iria contorná-la. Estaria alcoolizado, claro, só assim teria coragem. E creio que já falei isso para alguns. Nunca tive um sentimento de vida longa. Nunca esperei ter. Tanto que fica difícil traçar metas, fazer planos, seguir algo... Mas também não vivo o dia de agora como se fosse o último. Eu nunca vivo, apenas sobrevivo. E essa sobrevivência toda está me torturando, me tornando escravo de um tempo que eu não pertenço - que eu não deveria pertencer. Queria ter sido gerado no final dos anos 60, haveria mais motivos para se morrer jovem. Eu teria algum pelo menos, e teria vivido intensamente.

Não há justificativas aceitáveis para o que eu farei, eu sei, mas é como se fosse o meu destino morrer neste instante. Engraçado, sou muito cético para falar em destino! No entanto, desabei em lágrimas ao ver as crianças cantarem um hino de louvor a Nossa Senhora na missa deste domingo. Nunca tinha ido à igreja até o dia de hoje. Tive, pela manhã, o prenuncio do que há de acontecer esta noite - neste momento -, talvez isso tenha me motivado a ir. Quinta marcha. Cento e vinte quilômetros por hora.

Afundo o pé no acelerador, já não há mais marchas a serem passadas. Os arbustos se aproximam rapidamente. Sinto que desta vez não tem mais volta. Vozes invadem minha cabeça “Lucas, Lucas...”. Clamores de pessoas próximas, queridas por mim e que, com certeza, queriam o meu bem. As imagens boas de minha vida ficam mais nítidas em minha mente. Mas agora não há mais volta, mesmo se eu frear iria me chocar contra os arbustos e, talvez, caísse no desfiladeiro ou batesse no muro que existisse por detrás.

As vozes ficam mais altas. Ouço um choro de criança. De um bebê. Olho rapidamente para o banco de trás do carro e vejo em um berço um recém nascido desmanchando-se em lágrimas. Não! – exclamo alto. O coração dispara. Eu poderia tirar a minha vida, mas não a desse pobre inocente. Mas como esse bebê veio parar aqui? – questiono-me. Fito a estrada novamente, os arbustos já estão sobre mim. Freio bruscamente. É um desfiladeiro, como eu previa – ou gostaria. O carro é lançado comigo e a criança dentro pelo ar. Estamos em rota de colisão com o chão. As vozes insistem em me chamar cada vez mais alto. O chão está próximo. Olho para o bebê mais uma vez, seria a última vez. Seu choro também fica mais alto. E as vozes não cessam em nenhum momento: “Lucas, Lucas...”

Já não sentia mais o meu coração bater no peito. Agora ele estava exposto para mim sobre o painel, não me pergunte como. O chão negro se esclarece. Vejo rochas pontiagudas se aproximando. É a voz de minha mãe, agora eu percebo, e o bebê no banco de trás é meu irmão recém nascido. Ela nunca me perdoará. Não há volta. Fecho os olhos e aguardo o impacto. É o fim...

“Lucas... Lucas... Acorde, filho!”

“O bebê!”

“Sim ele está aqui... Levantei porque ele estava chorando, deve estar com fome e...”

“Mas o carro... e o desfiladeiro, a estrada...”

“Acho que você estava sonhando, meu querido. Vi você resmungando revirando-se na cama e resolvi acordá-lo...”

“Um sonho? Mas...”

“Talvez tenha sido um pesadelo, querido.”

“Parecia tão real!”

“Não se preocupe, pesadelos nunca se concretizam. Agora vamos, volte a dormir que amanhã você tem que acordar cedo para ir à escola”

“Sim senhora!”

“Mãe?”

“Sim?”

“Posso ir dormir com a senhora e o papai?... só por esta noite, por favor!”

“Venha então... mas só por essa noite, ouviu?”

“Tá”

Um comentário:

Sílvia Mendes disse...

Gostei, mas acho que seria mais legal se não fosse sonho. Se ele morresse de verdade ou estivesse tem alucinações por causa de alguma droga. Não curto muito os finais "felizes" ^^