quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O Contrato

Tudo começou quando conheci Janiel, há três anos. O ser mais belo que Deus poderia ter esculpido no barro. Tão grande era a sua beleza que, por onde passava, Janiel atraia todos os olhares e despertava o desejo nos homens e o ódio nas mulheres de toda a aldeia. Ainda lembro o dia em que a vi pela primeira vez: entrava pelos portões da vila, vinda das terras ao norte desconhecidas e apresentara-se ao meu pai - que era o líder do nosso povo e governante da província de Casperllin. Absolutamente linda. Sua pele era branca como a neve dos vales de Retia. Os olhos mais claros e cintilantes que eu já vi, pareciam duas jóias, e tão profundos quanto o mar da Gália, pois poderia afogar-me facilmente na doçura do seu olhar. Seu cabelo cor de cevada ondulava-se e bailava harmoniosamente com o vento que em seu rosto batia. Olhamo-nos por segundos, apenas, e nos apaixonamos.

Chegou o dia em que tive que partir para os campos de batalha defender o Reino da Baviera. Antes de nos separarmos, juramos amor um ao outro e prometemos ser fiéis. Ela me disse, com os olhos marejados, que esperaria o meu retorno o tempo que fosse necessário. E eu prometi regressar vivo para os seus braços. Junto a meu pai, que liderava a tropa de cem homens, rumamos ao sul deixando as mulheres, as crianças e os velhos cuidando do vilarejo.

A guerra era pior do que eu imaginava. Se o inferno fosse um terço do que eu presenciei já seria cruel e indesejável o bastante. Vi meus irmãos caírem sob a espada dos infiéis e sanguinários sarracenos. Vi meu pai jogar-se em minha frente e morrer em meus braços por uma flecha pagã. Vi o dia em que os poucos soldados restantes da Baviera bateram em retirada das terras do sul. Foi um longo ano em terras quentes, desconhecidas e banhadas de sangue em que envelheci como se fossem dez. Mas nem todo o ódio que me consumia pela morte dos meus queridos superava o desejo de retornar à vila e viver ao lado do meu grande amor.

Após esse ano sangrento a Coroa concedeu-me o direito de regressar à minha terra e permanecer por lá duas semanas para recrutar novos combatentes e enterrar as cinzas dos bravos que morreram. Era o tempo que eu precisava para casar-me com Janiel, fugir para leste e recomeçar uma nova vida ao lado dela.

Ao adentrar os portões da vila fomos recebidos com chuva de flores silvestres e aclamados como heróis. O choro das viúvas e mães ecoava presente, também, com a notícia que seus maridos e filhos já não pertenciam mais a esse mundo. Aquela comemoração não era necessária, eles não sabem o horror que é uma guerra, não sabem o horror que é matar uma pessoa sem saber o por que, o horror de ver um irmão cair sob a espada de nobres arrogantes.

Janiel não estava dentre as moças que nos rodeavam. Resolvi procurar pela autoridade maior, quando meu pai e eu não estávamos presentes, na vila. A sacerdotisa-mor encontrava-se no templo da Mãe Terra. Adentrei com poucas maneiras e lhe fui jogando as minhas interrogações sobre o paradeiro de Janiel. Logo repreendido por ela pelos meus maus modos, obrigou-me a ajoelhar perante a imagem da Santa Mãe e agradecer por estar vivo. Depois de feito, lhe dirigi a palavra.

Ela se manteve compenetrada em meus olhos como se tentasse ver através deles. Disse-me para buscar as respostas que tanto procuro na sabedoria suprema dos imortais, só eles poderiam justificar-se pelo feito. A preocupação já era fato em meu coração e o desespero por respostas fazia-me enlouquecer. Exigi à sacerdotisa, por direito de sucessor ao meu pai, o chamado da Deusa protetora de nosso povo, a Mãe Terra. Ela hesitou. Tentou argumentar que os Deuses Celtas não deveriam ser incomodados por assuntos tão vãos. E eu insistia com a voz mais alterada.

Sem mais resistências, a sacerdotisa iniciou a invocação. Como em um piscar de olhos, a Deusa tomou o corpo dela para si e, por intermédio dela, comunicou-se comigo. Ouviu-se apenas o murmúrio de uma voz rouca e fraca proferindo a seguinte frase: “Janiel não anda mais sobre a terra”. E logo em seguida a deusa abandonara o corpo da sacerdotisa.

Janiel estava morta. As batidas do meu coração ecoavam mais alto em todo o templo. A dor em meu peito disparara as lágrimas. Perguntei à guardiã do templo a causa da morte e o que mais me assustara estava por vir com a resposta.

“A Mãe Terra exigiu-a como sacrifício pela boa colheita que tiveram no ano que se passou...” A partir de então, eu não ouvira mais nada da boca da sacerdotisa. Ela seguia com suas justificativas e argumentos e eu nada respondia. Era tudo mentira; eu sabia que todas as mulheres da vila a odiavam por ser a mais bela e sabia que, como guardião do seu povo, a mãe Terra jamais exigiria tal penitência a mim. Elas a mataram por simples inveja.

O ódio consumia-me com rapidez e ferocidade. Sai do templo encolerizado. Peguei meu cavalo e galopei rumo à floresta negra. Eu já sabia o que iria fazer. Os anciões contam uma lenda que há muito tempo um homem pactuara com Samhain, demônio das profundezas e habitante da floresta de Caspien, para salvar seu povo do rigoroso inverno e tornar-se rei do mesmo. Se for verdade tal lenda, o demônio poderia fazer reviver Janiel.

Adentrei a floresta; sem perceber já estava envolto por sua escuridão. Eu gritava incessantemente por Samhain e ele não tardou a aparecer. Envolto por uma capa preta, não se via o seu rosto. Perguntou-me o motivo da audácia de chamá-lo assim. Tomando pelo desespero, respondo-lhe com pressa e questiono a veracidade da lenda. Eu não via os seus olhos, mas sentia que ele me encarava com desejo. Ele sabia quem eu era e de repente se pronunciou com uma revelação que eu não esperava.

Meu pai havia pactuado com ele nos vales de gelo das terras ao norte. Meu pai havia morrido, mas não pela guerra, e sim pelo vencimento contratual de sua alma. O Demônio ria enquanto me fitava perplexo e conflitante. Eu compreendi meu pai. Ele fez isso por amor ao seu povo e, agora, eu faço por amor a Janiel.

Sem muito que temer e sem mais o que perder, perguntei a Samhain se ele poderia fazer reviver Janiel. Ele me disse que sim, mas o preço seria alto. Para cada alma trazida das profundezas à superfície custaria, a mim, mil almas, de homens de sangue puro, ao balseiro. E que eu só veria Janiel ao cumprir o acordo até o próximo brumário.

E hoje, após um logo ano vagando pelas vilas de toda a Baviera, derramando o sangue de inocentes sobre a lâmina de minha espada, deparo-me com o último de minha lista. A alma que trará minha amada de volta aos meus braços: você.

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Texto enviado ao blog Duelo de Escritores.

5 comentários:

Anônimo disse...

Leo, queria agradecer por teres colocado no teu blogue a opção anónimo. Obrigado.
O título do teu blogue fez-me lembrar uma frase de Millôr Fernandes:
"Viver é desenhar sem borracha", neste sentido, “borrachas são dispensáveis”

Como te disse estive aqui no teu blogue "vasculhando" os teus textos :)
E queria dizer-te que tens muito potencial para a escrita.
Os grandes escritores defendem que existem duas ferramentas para escrever bem.
Uma delas é escrever muito (mas isso acho que já fazes) a outra é ler muito…

Adorei o teu texto “eu-Lírico sufocante” senti espontaneidade, sentimento.
Parabéns Leo! Continua…

Anônimo disse...

Esqueci de colocar o meu nome no comentário anterior...

Paula

Anônimo disse...

Léo!
HSAHSAIO
sempre com essas surpresinhas de final de texto, adorei!

adorei este texto em especial, o enredo todo... parabéns!
beijos

JLM disse...

Fiz uma referência ao seu texto no meu blog, ele realmente tá muito bom.

1 abraço.

Tamara disse...

Mandando ver hein Léo? Acho que tu devias entrar na área de Comunicação ;) (Sempre faço essa propagandinha do meu curso)

Ótimo texto. Muito bom mesmo!
Um beijo