Hoje, após cinco anos sem tocar no tabuleiro, eu arrumei as peças em seus devidos lugares e iniciei uma partida de xadrez comigo mesmo. E o que eu temia aconteceu: lembrei de você. Não só de você, mas dos momentos que passávamos juntos, do nosso amor misturado com a rivalidade, do tempo perdido nas discussões sobre quem ficava com as brancas ou pretas... Tanta coisa me veio à cabeça que minha mão chegou a tremer quando fui mover o peão do rei para a casa a frente.
O xadrez era o nosso jogo, não era? Claro que sim. Como não poderia ser? Adorávamos nos provocar, sentir aquela emoção de efetuar uma jogada maravilhosa e ver o espanto nos olhos alheio. Ninguém esquece a raiva e a vergonha de levar um cheque-pastor em cinco jogadas na primeira partida, não é mesmo? Ainda lembro-me dos teus olhos perplexos olhando para o tabuleiro em vão e depois me fitando com aquele olhar cerrado. Uma mistura de ódio com desejo de vingança, eu os achava lindos.
A nossa segunda partida durou alguns lances a mais. Você não caiu duas vezes na mesma armadilha, foi esperta. Mas não evitou que eu tomasse a tua Rainha com uma emboscada chinesa. Fui cruel ao usar o peão para tirá-la do jogo, eu sei, mas o desejo de rever o teu olhar encolerizado era mais forte e aquela era uma maneira de buscá-lo mais rapidamente. E para finalizar, meu cavalo tratou logo de encurralar o teu Rei, como na maioria das vezes.
Eu achava tudo aquilo muito divertido. Não zombava do teu esforço para me vencer, falo do prazer que eu tinha em te ver buscar cada vez mais aperfeiçoar a técnica no jogo para me superar. Por mais que eu não demonstrasse te admirava por aquilo, pela tua persistência e gana. Nunca vi você recusar uma intimação minha para uma partida, mesmo sabendo que não irias me vencer naquele momento. E eu adorava quando tentavas manter o ar de superior mesmo tendo perdido inúmeras vezes. Orgulhosa!
Lembro-me, também, da nossa última partida. Você lembra, não é? Que partida! A mais marcante de todas para mim e, com certeza, para você. Final do torneiro interclasses do Siqueira Campos. Só eu, você, e o relógio. O favorito contra a surpresa do torneio. O mestre versus seu mais amado discípulo, um duelo digno dos estúdios Hollywood, diriam os espectadores. Foi a disputa mais emocionante que tivemos, eu mal conseguia desgrudar os olhos das peças e do tabuleiro. Quando me permitia, de relance, eu te olhava e lhe via compenetrada e decidida a acabar com a minha arrogância naquela final.
Tu havias decorado, praticamente, todas as minhas jogadas. Era rápida, perspicaz, sabia exatamente o que estava fazendo. Havias me estudado. Reviu todas as nossas partidas anteriores, achou brechas, bloqueou as minhas armas, os meus ataques. Obrigou-me a ficar na defensiva. Defesa Francesa. Defesa Grega. Peões suicidas para protegerem as peças de maior valor. Tirou-me as figuras com as quais eu jogo melhor: os meus cavalos. Senti-me amputado sem eles, quase imóvel no tabuleiro. Fizesse-me aquilo de propósito, querias que a minha derrota fosse completa. Se continuasse naquele ritmo eu não agüentaria mais do que doze rodadas.
O desespero começou a tomar conta de mim, o suor em minhas têmporas era evidente, o nervosismo latejava em meu peito e, mesmo assim, eu mantinha a minha pose de favorito. Sério e centrado.
Confesso que tive medo. Medo de perder diante dos meus colegas e professores que nos assistiam, os quais me admiravam por ser um exímio jogador de xadrez. Medo de fracassar naquilo que eu era o melhor, de me tornar a chacota do colégio no dia seguinte. E o principal, o que eu mais temia quando iniciávamos uma partida feroz como aquela: O medo de não rever aquele teu olhar. Isso mesmo, aquele que mistura a raiva e o desejo de vingança com o seu jeito doce e orgulhoso de encarar a derrota.
Mas eu tinha uma carta escondida na manga. O pulo do gato. Algo que você nunca me viu utilizar em nenhum outro jogo, uma técnica que eu havia desenvolvido para o torneio estadual. Só a apresentaria aos meus adversários mais temidos. Mas você antecipou a surpresa que eu guardava para eles e me fez usá-la para me livrar daquela situação incômoda. Um jogo psicológico que poderia ser encarado como antiético ou trapaça, mas nada caberia, pois em suas peças eu nunca chegaria a tocar. O ardiloso blefe.
Assim que você mexeu a rainha para tomar mais um peão suicida meu, dei início a minha campanha ofensiva: Sorri debochadamente, dando a impressão de que eu esperava por aquilo. Você me olhou e dissimulou. Esse era o sinal para o próximo passo. No ato, revelei as tuas dez jogadas seguintes alterando apenas os dois movimentos finais – o que me daria a vantagem – para que eu pudesse contra-atacar. E lhe acrescentei as minhas próximas dez jogadas que finalizaria com um xeque-mate. Eu te disse que não terias escapatória, que estavas fadada, mais uma vez, a derrota.
Desenharas com os olhos as dez jogadas de cada um, que eu despejara a bom tom, no tabuleiro e comprovaras que, assim, perderias. Sua boca tremeu e seus olhos arregalaram-se, havias caído na armadilha. A pressão psicológica estava implantada.
A impressão que você teve a me ver revelando as supostas jogadas é que eu previa todos os teus movimentos rodadas a frente, que eu, praticamente, lia a sua mente. E isso te assustou muito, pois, assim, seria impossível me vencer. Dei a entender que o jogo estava sobre o meu controle e que eu só brincava com você; transformara-te marionete em minhas mãos. Não percebeste que eu limitei as tuas ações somente àqueles lances e você aceitou sem contestar.
Tua concentração foi abalada, começavas a errar. A primeira peça a cair foi a tua Rainha pela mesma armadilha chinesa usada em outrora. Estavas nervosa e vacilante. Eu não sabia que a minha técnica seria tão eficiente e rápida. Ou pelo menos eu pensava isso.
Xeque-mate!
O público que estava murmurando, à volta, calará.
Você parou. De relance, fechou os olhos lentamente e, em seguida, os abriu tão lento quanto. Conferiu o tabuleiro e o relógio. Aqueles segundos foram de uma eternidade torturante para mim, pois eu queria ver a tua expressão. Mas ela não viria. Você me fitou e, séria, fixou o olhar em mim. Um sorriso melancólico brotou sorrateiro em tua face, juntamente com algumas lágrimas inquietas dos teus olhos marejados. Essa imagem, ainda hoje, está tão nítida em minha mente como se estivéssemos finalizando aquela partida agora, neste exato momento.
Você ficou de pé, colocou os punhos fechados sobre a mesa, e baixou a cabeça por alguns instantes, enquanto eu me encontrava tão atônito olhando para o mesmo ponto onde, antes, estavam os teus olhos, que nem notei o que sussurravas para si mesma. Um silêncio total me invadia. Nem minhas próprias batidas do coração eu escutava. Eu as mal sentia. Era como se o tempo congelasse a mim em uma eternidade paralela e paralítica, onde a subsistência era encarada com a velocidade e a necessidade de um caramujo. Nem notei quando abandonaste a mim naquela mesa solitária.
Só fui despertado do meu transe quando soaram algumas palmas tímidas na platéia. Todos estavam tão perplexos quanto eu. O sorriso se aquietara em mim desde então, como se pedisse um tempo para repensar a relação comigo. Tanto que até hoje eu pouco sorrio para os outros. Creio que desaprendi ou ele me abandonara de vez e eu esteja apenas utilizando um genérico.
Há cinco anos que eu não jogava xadrez. Há cinco anos! Desde aquela nossa última partida. Desde que eu parei de ver aquele teu olhar. Desde que eu vim parar nesta clínica e você se mudara para outra cidade. Há cinco anos que eu não a vejo, até o dia de hoje quando apareceu nos jornais o teu rosto alegre em uma foto, preto e branco, com o troféu do Nacional de xadrez realizado, pela primeira vez, aqui em Santa Catarina. Nos agradecimentos citados por você na entrevista, havia um parágrafo inteiro dedicado a mim.
Eu chorei, senti a emoção invadir-me novamente, mesmo convicto de não ser digno de sua gratidão.
Você superou as derrotas e as dificuldades com muita coragem e determinação. Mas eu ainda não superei a perda do teu olhar.
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Notinha(s) do autor:
1) Fiz algumas alterações no texto iniciado no mês passado.
2) Fiz o final na correria, como sempre. Daria para ter trabalhado nele um pouquinho mais.
3) Agora, quem, realmente, perdeu/ganhou a última partida? ;D
4) Sem mais produções até dia 14/12, pois meu vestibular foi adiado para esta data.
Atenciosamente, o Autor.
5 comentários:
Olha Léo, eu adorei esse texto.
Fiquei emocionada em diferentes momentos, nomeadamente quando o narrador temia perder para aquela que era especial para ele e mais importante ainda, ele temia não ver o olhar dela, aquele jeito de olhar que ele tanto amava.
Este texto está carregadíssimo de saudade, medo, amor, reconhecimento e também arrependimento, pelo facto do narrador ter mantido uma postura que, para ele, não era mais do que uma forma simples de ver as “qualidades” da sua amiga/amada. Não esqueçamos que ele a admirava.
Contudo, o sorriso cheio de nada da amada e suas lágrimas ausentaram o narrador de qualquer sentimento, originaram a que ele se apercebesse que a estava a perder. O olhar por parte dela, que ele tanto gostava, não se verificou. Apenas a desilusão vã no rosto da amiga/amada permaneceu para sempre na sua memória. E o que ele mais temia aconteceu, a ausência do orgulho dela.
Disseste que escreveste o final nas pressas e que poderias tê-lo aperfeiçoado, pois eu, como leitora achei que este final está perfeito.
Agora, tem uma “coisa” que, a meu ver, continua falhando que são o emprego correcto dos pronomes pessoais. Se reparares estás escrevendo ora na segunda pessoa “tu” ora na terceira pessoa “você”. Sei que provavelmente é um hábito da vossa fala no dia-a-dia, contudo, tens de ter em atenção quando escreves.
Mais uma nota, no quarto parágrafo, na frase “E eu adorava quando tentavas manter o ar de superior mesmo tendo perdido inúmeras vezes. Orgulhosa.” Acho que se colocares uma exclamação no “orgulhosa!” em vez de um ponto final, melhora o sentimento de carinho que a meu ver o narrador quer transmitir.
Léo, PARABÉNS. Adorei o texto, mas adorei mesmo!!
Paula
*Abraço
Paula, antes de tudo, eu agradeço o comentário.
Bom, vamos aos esclarecimentos:
Aqui no Brasil é muito comum utilizar o “Você” em segunda pessoa do singular quando a pessoa se encontra introduzida na trama, como em uma conversa.
Entendo o que me dizes, tanto que dei uma pesquisada melhor antes de te responder.
"O pronome você(s), a rigor, é usado como 3ª pessoa do singular/plural, conforme atestam as 3ªs. pessoas do modo imperativo. Na prática, ele funciona como 2ª pessoa, uma vez que é usado para se referir à pessoa com quem se fala e não à pessoa de quem se fala.
A explicação está na origem do pronome. Você se deriva da expressão "Vossa Mercê", que se transformou com o tempo até chegar ao atual você. Isso significa que, pela sua origem, você é um pronome de tratamento. O problema é que todos os pronomes de tratamento (=Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Vossa Majestade, Vossa Santidade...) são de 3ª pessoa. Assim sendo, o pronome você é de 3ª pessoa, mas é usado em substituição ao tu (2ª pessoa = com quem se fala)." Fonte: http://www.nlnp.net/pron-vc.htm
Outra fonte: http://recantodasletras.uol.com.br/teorialiteraria/727241
No texto, se não deixei claro, é como se ele estivesse mesmo conversando com ela. Como em uma carta. Tanto que me permiti utilizar desse artifício para o texto não ficar muito enjoativo e cansativo com os excessivos "Tus" e "Vocês". Até por isso o meu vício incontrolável de misturar os dois.
Não achei nenhuma restrição quanto a essa pratica em minha pesquisa.
Caso você tenha, por favor, me envie para que eu possa estudar e assimilar melhor o assunto.
Com relação ao quarto parágrafo, eu tinha colocado com interrogação o “Orgulhosa!” só que não havia salvo essa modificação. Agora, já foi efetuada novamente.
Muito Obrigado mais uma vez, Paula! Agradeço de coração!
Abraço :*
Bom dia Leo. Olha, aqui em Portugal quando escrevemos é regra optar somente pela 2ª ou 3ª pessoa, não podemos misturar. Por isso penssei que aí também era assim. Sendo assim, o teu texto está perfeito :) Como te disse adorei!
Um abraço e bom estudo para os teus exames.
E fico esperando novos textos.
Paula
*Abraço
lééo, adorei esse texto, como todos os outros né :P
ficou muito bom mesmo!
ás vezes fico pensando se você não escreve sobre você mesmo...
vai saber né?! ^^"
;* beijos
legal ^^ gente
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